Recanto do Chagoso
Prosa e Poesia
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Textos
Elias
     De uma alegria contagiante, sabia se portar em qualquer meio e ainda que a situação lhe fosse adversa, sempre se saia bem. Era menor de idade e só não era o mascote no trabalho por se portar e produzir melhor que muitos veteranos. De família humilde, em breve se tornaria o esteio da casa, como ele mesmo fazia questão de dizer. A idade avançada dos pais lhe preocupava e a ele cabia o papel de protegê-los.
     Trabalhávamos numa grande oficina, onde, no inverno chuvoso (caracteristico da regiao Norte) se recuperavam as máquinas pesadas usadas na construção das estradas no verão de sol. Sua área era a mecânica de motores e seu chefe já se vangloriava do futuro mecânico que preparava com esmero. A pontualidade e assiduidade eram absolutas e isso cativava mais ainda seus superiores que não viam o dia em que chegaria sua maioridade.
     Uma certa manha se atrasou por um motivo justificável e foi no meu setor, o escritorio, que foi se justificar e pedir para marcar sua presença. Deusdete, meu colega de ofício ainda brincou: "Só marco a tua presença se tu me der esse boné...". "Não posso!", disse sorrindo. "Ele serve pra proteger minha cabeça..." e saiu, ainda sorrindo. Nessa mesma manha sai para fazer as "compras do mês" e também me atrasei um pouco. Teria que voltar as dez horas e acabei voltando quase onze.
     Ao entrar no pátio do local de trabalho estranhei o silêncio profundo que reinava no ambiente. A primeira idéia que me surgiu foi a de que me atrasara muito, mesmo; e já haviam todos ido almoçar. Mas, consultando meu relógio, ainda faltava mais  uma hora para tal. No meio do percurso encontrei um colega a quem questionei o motivo de tal silêncio.
     - Sabe o Elias? - Veio o meu colega.
     - Ele chegou atrasado mas já está ai. Chegou antes da minha saída...
     - Não, cara. Não é isso.
     - O que foi então?
     - Vai lá você mesmo ver...
     No setor do Elias estava uma aglomeração sem tamanho. Eu procurava entender o que estava acontecendo a medida que me aproximava, abrindo caminho. A cena que vi foi tão chocante que me comove até hoje, quase quarenta anos depois. No chão estava o corpo inerte de meu colega. Um pano cobria-lhe a cabeça, mas a cabeça parecia não estar alí, dado o pequeno volume que se formava. Olhando ao redor então compreendi a tragédia. Elias estava trabalhando com a cabeça sob o travessão que une os braços de uma pá mecânica, daquelas que recolhem coisas no chão e colocam em caçambas.  A barra que sustentava a peça escorregou e a cabeça dele foi esmagada com tamanha violência que  o cérebro espirrou em diversas direções.
     No dia seguinte no enterro do colega ninguem conteve as lágrimas, ainda que soubéssemos que nenhuma dor o probre coitado sentiu. Nos dias posteriores e até hoje não consigo esquecer o fato, mais ainda pelas instigantes palavras que dissera ao negar o boné na brincadeira com o Deusdete.
Chico Chagoso
Enviado por Chico Chagoso em 03/06/2012
Alterado em 26/08/2012
Comentários
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Cida Maia Oliveira
Emocionante.. triste... fatalidade muito bem descrita. Obrigada pela visita na minha página.
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meriam lazaro
Que trágico e infelizmente não raro acidente de trabalho. Abraço, Meriam
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Facuri
verdadeiras crônicas e relatos que nos fazem pensar...Uma triste < quase > metáfora em ter negado o boné que era para sua ''proteção''...abçs irmão!
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Arigó
Meu camarada!!! Essa crônica seria insólita se não fosse trágica. Sabe... Meu jovem! Às vezes eu escrevo contos em que retrato cenas que eu acho difícil de acontecer na vida real, no entanto, o cotidiano, muitas vezes, apresenta-se mais cruento que a ficção. Parabéns pelo texto e meus sentimentos, ainda que tardios, pela perda do amigo.
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Lucimar Alves
Uma crônica que retrata com uma realidade assustadora o contidiano de muitas pessoas.